Ao avaliar uma proposta de financiamento, com recursos do Green Climate Fund (GCF) da ONU, para o desenvolvimento da mobilidade urbana via eletrificação, o Ministério de Minas e Energia reforçou, no início de abril, o compromisso do Brasil com a produção sustentável de bioenergia e biocombustíveis, indicando que o país pretende se manter aberto às alternativas para a descarbonização do segmento de transporte.
Esse setor ainda é fortemente dependente do petróleo, que responde por 90% do seu consumo total de combustível, constituindo um eixo central no desafio da transição energética. O Plano Decenal de Energia (PDE 2030), elaborado pela Empresa de Planejamento Energético (EPE), indica que o transporte continuará a ser o principal responsável pelas emissões de gases de efeito estufa na produção e consumo de energia no Brasil, respondendo ao fim desse período por 45% do total de emissões.
Eletricidade, hidrogênio e biocombustíveis têm sido as principais alternativas para a descarbonização do setor, de forma isolada ou combinada. O sucesso das políticas que incentivam estas alternativas depende tanto da capacidade de entrega de um produto confiável a custo competitivo, quanto da sustentabilidade em impacto local, escala global e segurança.
No Brasil, o protagonismo tem sido dos biocombustíveis. Este projeto se iniciou na década de 1970 com o Próalcool, avançou com a tecnologia de motores flex fuel, com a mistura obrigatória de etanol à gasolina e de biodiesel ao diesel, e culminou no Renovabio, no fim de 2017, estabelecendo o primeiro mercado de carbono regulado no Brasil.
No entanto, num mundo com rápidas e disruptivas mudanças tecnológicas, a segurança energética depende da constante evolução da política pública. No segmento de biocombustíveis, isto significa o desenvolvimento e a adoção dos chamados biocombustíveis avançados, como o etanol de segunda geração (E2G) e o biodiesel oriundo do hidrotratamento, como o HBio ou HVO (hidrotratamento do óleo vegetal, em inglês).
Temos colhido resultados interessantes com o E2G, mas o biodiesel continua a ser produzido apenas a partir de uma tecnologia de 1937, de base éster. Para mudar este quadro o país precisa ser ágil na adoção das tecnologias de segunda geração, atualmente travada pela regulamentação.
A tecnologia do hidrotratamento é a que mais cresce no mundo, pois gera um produto quimicamente equivalente ao derivado fóssil. Essa molécula fungível permite uma mistura ao diesel em qualquer percentual, sem perda de qualidade e totalmente compatível com a infraestrutura existente para os derivados do petróleo.
Isso permite que, no limite, as atuais refinarias de petróleo sejam adaptadas para processar apenas biomassa renovável. Recentemente a francesa Total anunciou a conversão de uma de suas plantas em uma biorrefinaria, com capacidade para transformar até 400 mil toneladas de óleos renováveis ao ano em biocombustível de aviação, diesel renovável e nafta renovável para a produção de bioplásticos.
Em dezembro de 2020, o Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) determinou a criação de um Grupo de Trabalho (GT) para deliberar sobre a inserção desses biocombustíveis avançados na matriz energética e sua habilitação às políticas públicas. Isso inclui a elegibilidade para o atendimento do mandato obrigatório de adição ao diesel fóssil e para acessar o mercado de carbono do programa Renovabio, através da emissão de CBios. O relatório é esperado para meados de junho.
É importante lembrar que tanto a Lei do Petróleo quanto a do Renovabio preconizam como pilares de política energética brasileira a promoção da competitividade do país no mercado internacional de biocombustíveis. Adicionalmente, a Lei do Renovabio define como um de seus princípios o “impulso ao desenvolvimento tecnológico e à inovação, visando a consolidar a base tecnológica, a aumentar a competitividade dos biocombustíveis na matriz energética nacional e a acelerar o desenvolvimento e a inserção comercial de biocombustíveis avançados e de novos biocombustíveis”. Qualquer restrição às novas tecnologias vai contra os conceitos estabelecidos em Lei e implica na criação de uma reserva de mercado para o biodiesel éster, o que também contraria a Lei de Liberdade Econômica (13.874/19).
O biodiesel base éster cumpriu sua função e ainda terá um papel relevante na matriz energética, até que os investimentos necessários à produção dos nos novos produtos se materializem. Contudo, é sabido que sua instabilidade química pode causar entupimentos em filtros e bombas de veículos pesados, em teores acima de 10% no diesel, e esta é uma das razões para sua limitação a 7% na legislação europeia. Também pode afetar os catalisadores de tratamento de emissões de gases poluentes e materiais particulados em motores mais modernos, como os da próxima fase do Programa de Controle da Poluição do Ar por Veículos Automotores (PROCONVE), ou o Conama P8, o que inviabiliza a introdução destes motores a partir de 2022, como previsto. Os biocombustíveis avançados, como o diesel HVO/verde, suportam essa expectativa regulatória e permitem a adição de volumes ainda maiores de renováveis na mistura.
Adicionalmente, há sinergia na produção do diesel HVO com outro biocombustível ainda não produzido no Brasil, o bioquerosene de aviação. O Bio-QAV tem um componente estratégico, pois atende às determinações do Corsia, acordo internacional assinado pelo Brasil com o objetivo de limitar as emissões do setor aéreo a partir de 2027. Não aderir a esse padrão, nos prazos acordados, vai gerar prejuízos ao país.
A Petrobras já concluiu com sucesso um projeto piloto de produção de diesel com parcela renovável na Repar, através do coprocessamento de biomassa renovável com petróleo usando a tecnologia do hidrotratamento. Aguarda apenas o destravamento da regulamentação para dar início à produção comercial do diesel verde no Brasil.
Além da questão tecnológica, é importante também que se consolide em janeiro de 2022 a modernização das relações comerciais no setor de biodiesel, migrando do atual sistema de leilões bimestrais para a livre negociação entre produtores e distribuidores, com liberdade de importação, em linha com a abertura de mercado do downstream brasileiro. A data foi definida pelo CNPE, e a Agência Nacional do Petróleo (ANP) está detalhando as novas regras.
Em setembro deste ano, o Brasil vai liderar os “Diálogos de Alto Nível” da ONU sobre o tema “Transição Energética”. A escolha se deva à nossa política energética, baseada numa ampla gama de soluções para a descarbonização da economia, combinando as vantagens da bioenergia sustentável, hidro, solar e eólica com as fontes fósseis.
A defesa que este artigo faz da rápida inserção dos biocombustíveis avançados no país está absolutamente alinhada com os princípios de política energética e de prover energia limpa, sustentável, confiável e acessível para todos.
Sobre a autora: Valéria Amoroso Lima é a diretora de Downstream do IBP. Formada em Economia pela Universidade Federal de Minas Gerais, com pós-graduação em Mercado de Capitais pela FGV e pós-MBA em governança pela Saint Paul Escola de Negócios. Tem 36 anos de experiência em diversas áreas do setor de energia, atuando em empresas estatais e de capital privado nacional e internacional. Suas últimas posições antes de integrar o IBP foram na BG e na Shell, participando desde o início do projeto de desenvolvimento do pré-sal brasileiro.
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