Redação/Boletim SCA
Já faz muitos anos que a vinhaça não é "apenas" um resíduo da destilação do etanol nas usinas, que utilizam o subproduto na irrigação dos canaviais. Mais recentemente, esse líquido malcheiroso, mas cheio de nutrientes, começou a entrar em projetos de biogás e, agora, uma iniciativa conjunta da Usina da Pedra, da Fermentec e da JW busca utilizar a vinhaça para a produção também de biodiesel.
O segredo para a transformação do resíduo em um biocombustível é uma levedura selecionada pela Fermentec a partir de um banco de micro-organismos da Universidade do Minho, de Portugal, e testada em pesquisas no Brasil. "Essas leveduras comem o que der e transformam em óleo", afirma Silene Cristina de Lima Paulillo, coordenadora de Pesquisas em Fermentação e Seleção de Leveduras da Fermentec.
A produção começou a ser estudada em laboratório e, desde 2019, é testada em uma planta-piloto montada ao lado da unidade da Usina da Pedra em sua sede, em Serrana (SP), com tecnologia da JW. Até agora, o projeto demandou aportes de R$ 510 mil, considerando trabalhos de laboratório, a construção da planta-piloto e a operação em si. O valor não inclui serviços laboratoriais da Fermentec.
Com reatores de 40 litros de capacidade, a planta-piloto já produziu óleo a partir de vinhaça de duas safras diferentes e também de outras empresas - e os resultados foram surpreendentes.
Cada mil litros de vinhaça utilizados resulta na produção de 2,8 litros de óleo pronto para ser transformado em biodiesel. Esse número pode variar dependendo das composições das substâncias. Apesar do alto consumo de vinhaça no processo, a quantidade do líquido que sai como resíduo da usina também cresce, na ordem de 12 litros para cada litro de etanol destilado.
Com essa produção, o biodiesel resultante do processamento do óleo poderia colaborar no abastecimento da frota de tratores e colhedoras - o gasto de diesel equivale a 3 litros para cada tonelada de cana colhida e processada, segundo um levantamento feito com usinas da região de Ribeirão Preto (SP) com apoio da Fermentec.
Entretanto, ainda não há hoje no mercado caminhões que rodam apenas com biodiesel. Caso houvesse, o biodiesel resultante da vinhaça produzida pela própria usina permitiria substituir até 75% do consumo de diesel de uma planta padrão de açúcar e etanol, afirma Mario Lucio Lopes, diretor científico Fermentec.
Para uma usina mais alcooleira, esse percentual seria maior. Na Usina da Pedra - que conta com três unidades no interior paulista e tem flexibilidade para destinar até 70% da cana para o etanol -, o volume potencial de produção conseguiria substituir todo o consumo de diesel, segundo Alexandre Menezes, diretor de divisão industrial do grupo.
Na produção do óleo, a levedura também consome os açúcares residuais que não são fermentados e que costumam ser perdidos no processo. "A levedura tem grande versatilidade metabólica. Ela consome açúcares, glicerol, ácidos orgânicos... Se alguma coisa se perder na fermentação, pode ser recuperada em uma etapa adicional", ressalta ele.
Além disso, a levedura utiliza carbono para a composição do óleo em seu processo, o que resulta em uma diminuição do teor de carbono emitido em até 80%, afirma Lopes. Esse efeito pode ajudar na diminuição da pegada de carbono do processo produtivo e, assim, melhorar a nota de eficiência energético-ambiental das usinas credenciadas no programa federal RenovaBio.
Os testes também se depararam com uma descoberta inesperada: a levedura é capaz de consumir os ácidos orgânicos presentes na vinhaça e transformá-los em lipídeos, o que aproxima o líquido resultante de um pH neutro. Isso reduz o poder corrosivo da vinhaça, que normalmente demanda equipamentos com materiais mais resistentes - e caros.
Além disso, a levedura mostrou-se capaz de produzir também ácidos graxos com poder de eliminar espumas. Esse potencial pode ser aproveitado no próprio processo industrial e reduzir custos, já que antiespumantes de origem fóssil são importantes insumos das usinas, ressalta Lopes.
Os resultados, porém, podem variar muito de acordo com a composição da vinhaça, que muda a depender, por exemplo, de a usina produzir apenas etanol ou também açúcar, ou conforme a concentração de sacarose na cana. Por isso, a planta já utilizou vinhaças de diferentes usinas e safras, para testar composições distintas.
Agora, o principal desafio é assegurar a produção com a mesma qualidade em escalas maiores e garantir a viabilidade econômica de um investimento desse porte. O presidente da Fermentec, Henrique de Amorim Neto, prevê ao menos mais dois anos de testes com a tecnologia na planta-piloto antes do lançamento da novidade. "Para validarmos em escala industrial, temos que fazer vários ajustes. Tem vários desafios, porque o ambiente industrial é completamente diferente", ressalta.
Além disso, os testes na planta-piloto resultaram apenas no óleo, e não no biodiesel. Tecnicamente, Lopes afirma que o uso do óleo de vinhaça na produção de biodiesel é garantida porque o produto tem alto grau de saturação, com qualidade superior às de soja e milho - já utilizados na produção de biodiesel - e inferior apenas à do óleo de coco. Mas, se uma usina de cana-de-açúcar quiser produzir o biodiesel, é preciso uma etapa posterior de processamento, com investimento industrial adicional.
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