Ali Hage
A fraca atividade no setor de petróleo e gás que testemunhamos nos últimos dez anos no Brasil, desproporcional ao seu potencial petrolífero, teve um custo incalculável. Desperdiçou-se a oportunidade de maximizar o retorno financeiro deste potencial e mesmo projetos e questões relevantes em andamento ficaram em segundo plano. Um importante exemplo é a pouca atenção dada nesse período ao surgimento de dificuldades no cumprimento das regras de conteúdo local (“CL”) que apenas recentemente entraram em pauta para discussão entre indústria e governo.
Em 2005, foram introduzidas, por meio do modelo de contrato de concessão para a 7ª Rodada de Licitação de blocos para exploração e produção de petróleo e gás natural, regras complexas e elevadas exigências de CL que foram refletidas (com algumas diferenças) em todos os contratos de concessão subsequentes, até a 13ª Rodada em 2015, bem como no contrato da 1ª Licitação de Partilha da Produção ocorrida em 2013 (“Rodadas Passadas”).
Os contratos das Rodadas Passadas previram a possibilidade de incumprimento dos compromissos de CL neles refletidos. Estabeleceram cláusulas para tratar de tal possibilidade, autorizando a Agência Nacional do Petróleo, Gás e Biocombustíveis (ANP) a rever, realocar percentuais ou perdoar descumprimentos em caso de prazo ou preço excessivo, ou de tecnologias indisponíveis no mercado local. Referidas cláusulas, entretanto, assumiam que pedidos de isenção de cumprimento da obrigação, ajustes de percentual e transferências de excedente de conteúdo local (“Pedidos de Isenção”) teriam caráter e incidência excepcional, diferentemente do que ocorreu.
A ANP já aplicou R$576 milhões em multas por descumprimento da obrigação de CL e, desde 2011, recebeu 225 Pedidos de Isenção, sendo que a grande maioria desses pedidos ainda está sob análise pelo referido órgão. Autoridades do setor e petroleiras apontam para as multas e número de Pedidos de Isenção para sugerir que a política de CL das Rodadas Passadas fracassou.
Recentes mudanças legislativas e regulatórias tentam reverter esse cenário, trazendo regras de incentivo como o Decreto 8.637/2016 que institui o PEDEFOR (Programa de Estímulo à Competitividade da Cadeia Produtiva), incluindo um sistema de bonificação às petroleiras, por meio do qual certas iniciativas de fomento a fornecedores gerarão créditos que poderão ser utilizados para atender a obrigações contratuais de CL. Além disso, foram definidas novas regras e percentuais de CL para os contratos de concessão da 14ª e contratos de partilha da 2ª e 3ª rodadas de licitações (“Novas Rodadas”), vistos como mais flexíveis e capazes de melhor posicionar os ativos brasileiros na concorrência global pelos investimentos das petroleiras.
Foi também colocada em consulta pública a edição de resolução que disciplinará os requisitos e procedimentos aplicáveis aos Pedidos de Isenção relativos aos contratos das Rodadas Passadas. A minuta de resolução estabelece criterioso processo para formulação e processamento de Pedidos de Isenção bem como oferece aos signatários dos contratos das Rodadas Passadas a opção de aditarem suas cláusulas de CL para termos idênticos aos previstos nos modelos de contratos das Novas Rodadas. A contrapartida para o exercício desta opção é a impossibilidade de formulação de Pedidos de Isenção futuros, bem como a renúncia a qualquer pleito contra a ANP em função de multas já pagas por descumprimento de obrigação de CL.
A proposta de resolução também apresenta balizadores mais objetivos para determinar o que significaria a referência a preço e prazos “excessivos” prevista nos contratos das Rodadas Passadas, o que tornaria mais clara a eventual legitimidade de Pedidos de Isenção futuros. Pedidos de Isenção não serão admitidos quando a diferença de preços entre propostas comerciais de fornecedores locais e estrangeiros for inferior a 25%, questão que deve pesar na decisão das petroleiras sobre o exercício da opção de aditarem seus contratos. Sem a possibilidade de contar com Pedidos de Isenção, petroleiras deverão pagar o preço do mercado local ou incorrer em multas.
A sugestão de aditamento aos contratos acima citados visa retirar da ANP e das petroleiras o ônus de tratar individualmente cada Pedido de Isenção. Segundo a ANP, a demanda potencial de Pedidos de Isenção é imprevisível, podendo alcançar uma escala de milhares de processos administrativos.
Entretanto, algumas entidades de classe e fornecedores vem se posicionando publicamente contra a redução dos percentuais de CL e a proposta de resolução apresentada pela ANP. Estes sugerem que poderão questionar judicialmente tanto a proposta de resolução quanto Pedidos de Isenção formulados pelas petroleiras. Sustentam que regras do passado não podem ser alteradas, especialmente em razão de os percentuais de CL terem sido componentes das propostas que resultaram na outorga das concessões das Rodadas Passadas. Questionam também diagnósticos sobre a falta de competitividade da indústria nacional que embasam Pedidos de Isenção submetidos a ANP. As petroleiras, por outro lado, aprovam a abordagem pragmática da proposta de resolução, valorizando a solução prática apresentada e o potencial incentivo a investimentos futuros.
Com essa divergência, um sério cenário de insegurança jurídica poderá se instalar. Caso a resolução seja aprovada, eventuais aditamentos contratuais poderão ter sua validade questionada judicialmente. Caso esses questionamentos tenham sucesso ou a resolução não seja aprovada, poderá haver um tsunami de processos administrativos capazes de paralisar a indústria ou no mínimo consumir tempo e recursos preciosos.
Processos administrativos não são triviais, devem respeitar princípios constitucionais de ampla defesa e contraditório, com suas vias recursais e possíveis revisões pelo judiciário. Além disso, como previsto na minuta de resolução proposta, a ANP decidiu ser apropriado submeter cada Pedido de Isenção (ou grupo de pedidos sobre o mesmo tema) a consultas públicas. Pode-se imaginar, portanto, hipóteses de processos administrativos que, após consultas públicas e o esgotamento de recursos nessa esfera, sejam levados ao judiciário e debatidos em todas as instâncias possíveis, ao longo de muitos anos.
Logo, petroleiras poderiam acabar burocratizando seus processos, exigindo excessivos documentos e detalhamentos na fase de seleção de contratados, tendo em vista sempre eventual necessidade de utilizar tais documentos em Pedidos de Isenção futuros e até mesmo para instruir processos judiciais.
Os incentivos para as petroleiras investirem no desenvolvimento de Fornecedores (usando, por exemplo, suas obrigações de investir em Pesquisa e Desenvolvimento ou via PEDEFOR) seriam sempre insuficientes. As estratégias de contratação para os contratos das Novas Rodadas também tenderiam a ser pautadas por esse ambiente de polarização entre Fornecedores e petroleiras.
Em um mercado onde agentes são levados a lutar pelo que favorece apenas suas próprias classes, em detrimento dos demais participantes desse mercado, todos acabam perdendo. Nos últimos anos, no Reino Unido, a falta de cooperação e colaboração entre agentes do setor de E&P foi diagnosticada como importante obstáculo à maximização da recuperação dos ativos do Mar do Norte e se tornou questão merecedora de atenção legislativa e regulatória. Atos regulatórios decorrentes desse diagnóstico impõem às empresas do setor que ao mesmo tempo que busquem alocar valor entre si, balanceando risco e retorno adequadamente, considerem o melhor resultado geral ainda que, individualmente não atinjam seus resultados máximos. Existem diferenças deste exemplo, mas o conceito maior parece ser válido: todos os agentes deveriam ter a responsabilidade de considerar objetivamente o que seria melhor para a indústria como um todo e para o país.
As atuais discussões sobre CL podem, portanto, acabar destruindo valor ao invés de capitalizar ao máximo o que pode ser a última oportunidade de se extrair riqueza das reservas de petróleo e gás do Brasil. Disputas que exigem vencedores e perdedores oferecem remédio ineficaz, enquanto iniciativas pró-mercado como o PEDEFOR, a maximização do uso dos recursos de P&D para o desenvolvimento de Fornecedores, um contínuo fluxo de investimentos e de contratações de bens e serviços parecem garantir uma solução muito mais saudável.
Sobre o autor: Ali Hage é sócio do Veirano Advogados nas áreas de práticas de Petróleo, Gás & Biocombustíveis e Infraestrutura & Projetos, baseado no Rio de Janeiro.
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