Hidrovias brasileiras quase não são usadas.
O Globo
Se a cabotagem, o transporte de cargas no país por via marítima, cresce forte no Brasil, o mesmo não se pode falar da navegação entre os rios. Excetuando o Rio Amazonas, as hidrovias brasileiras quase não são usadas.
Nem mesmo os custos menores de transporte nos rios e a maior facilidade para integração com o modal marítimo ajudam o setor, que sofre com uma falta crônica de infraestrutura e descaso público.
Os desafios do setor estão no terceiro e último dia da série de reportagens multimídia sobre cabotagem que O GLOBO publica no jornal impresso e no site desde domingo.
Da mesma forma que a cabotagem é uma vocação natural do Brasil — que tem oito mil quilômetros de costa — a grande quantidade de rios navegáveis deveria ser uma vantagem comparativa, assim como o Rio Mississippi nos EUA ou os grandes rios da Europa.
No Brasil, não há, sequer dados estatísticos sobre o uso das hidrovias, que é indicada por especialistas como o principal meio para ligar a nova fronteira do agronegócio, no Centro-Oeste, ao litoral.
Mesmo antigas rotas, como o Rio São Francisco, pararam de ser usadas em razão do avançado estágio de degradação do rio. Rotas pequenas e com demanda forte, como Rio Grande-Lagoa dos Patos- Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, praticamente não são usadas.
Recentemente, o Rio Tietê, em São Paulo, começou a avançar no transporte fluvial. O rio é um dos poucos do país mapeados. Mas este tipo de atividade está quase parada, prejudicada pela forte seca que assola São Paulo.
— Todos os governos têm sua parcela de culpa. Até hoje o Brasil desconhece quais rios são viáveis, não há um mapeamento deles como há na costa. Com isso o Brasil perde oportunidades gigantescas — afirma o advogado e especialista no assunto José Mário da Silva, associado do Silveira, Athias, Soriano de Mello, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados. Ele lembra que, com alguns canais, seria possível criar uma hidrovia ligando a Bacia Amazônica ao Rio do Prata, criando um corredor entre rios de Belém a Buenos Aires.
Segundo Silva, as poucas iniciativas do setor estão abandonadas:
— O governo gastou quase R$ 1 bilhão para construir eclusas em Tucuruí, no Rio Tocantins, mas elas só podem ser usadas durante menos de seis meses por ano, pois falta o derrocamento (espécie de dragagem) de um trecho do rio. A hidrovia está incompleta — disse ele, lembrando que o governo insiste em construir novas hidrelétricas sem eclusas, comprovando que o setor não é prioritário.
Excetuando Manaus, no restante da Amazônia há um transporte rodo-fluvial, onde são usadas barcaças nos trechos sem rodovias.
Embora atenda parte da demanda, este serviço não é o ideal: — Sabemos que está aumentando o número de barcaças e, ao mesmo tempo, sabemos que começam a surgir problemas, como roubos.
Estas embarcações são muito mais vulneráveis do que os navios e começam a surgir, na Amazônia, barcaças com escoltas armadas — diz o advogado.No começo de setembro,
O GLOBO percorreu cerca de dois mil quilômetros do Rio Amazonas a bordo do Navio Américo Vespúcio, da Aliança.
No trajeto, a quantidade de barcaças mostra que há um mercado potencial para navios maiores. Especialistas indicam, por exemplo, que os portos de Santarém e Belém/Vila do Conde, no Pará, poderiam entrar nas principais rotas da cabotagem.
Paulo Resende, especialista em Logística da Fundação Dom Cabral, afirma que a cabotagem deveria estar integrada à navegação fluvial e às ferrovias, deixando os caminhões para pequenos trechos.
A Agência nacional de Transportes Aquaviários (Antaq) afirmou, em nota, que uma das soluções para o setor, no futuro, é a criação do Operador de Transporte Multimodal (OTM), uma entidade que pode ao mesmo tempo trabalhar com diversos tipos de transporte, como gestão de terminal, navios e ferrovias.
“Há questões específicas que envolvem a efetivação deste instituto. Elas passam por políticas diferenciadas de ICMS, da burocracia, das facilidades de armazenamentos intermediários, do uso de hidrovias, bem como na modernização da capacidade de “tombo” (mudança de modais) existente nas infraestruturas portuárias e dos demais modais”, afirmou o órgão.
Segundo o Rodrigo Paiva, diretor da Mind Estudos e Projetos, o ideal era mapear a malha hidroviária, com terminais de transbordo e criação de polos logísticos.
A falta de rotas é a segunda maior reclamação das empresas para não usar a cabotagem, aponta pesquisa inédita feita com 120 grandes companhias pelo Instituto de Logística e Supply Chain (Ilos). — Das 120 empresas que entrevistamos, 45% utilizam a cabotagem, porém outros 40% já usaram ou tentaram utilizar a cabotagem, sem sucesso — conta Monica Barros, gerente da área de Inteligência de Mercado do instituto e responsável pela pesquisa, que deverá ser publicada nas próximas semanas.
A pesquisa indica que, entre as empresas que utilizam a cabotagem, 66% reclamam da falta de infraestrutura portuária, 63% da burocracia e 62% do elevado tempo de trânsito das mercadorias.
Já entre as empresas que desistiram ou tentaram a cabotagem, 43% reclamam da falta de integração entre os modais de transporte, 39% da falta de rotas de cabotagem e também da falta de infraestrutura portuária.— A maior parte dos problemas do setor está relacionada aos portos e à burocracia, mas há também a falta de rotas, o que indica que há um mercado potencial que não está sendo atendido — disse Monica.
Especialistas afirmam que as três principais empresas de cabotagem se concentram apenas em rotas mais lucrativas.
Outro problema é a baixa presença de empresas nacionais no segmento devido aos altos investimentos e em razão da falta de navios brasileiros, pois os estaleiros estão focados na área de petróleo.
Muitos lembram que o setor é estratégico e que controle estrangeiro do setor pode explicar o abandono de algumas rotas.
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